Herança digital: o que é e como funciona
A digitalização da vida cotidiana levanta um novo debate jurídico: como garantir a sucessão de bens virtuais, como criptomoedas e perfis online, diante da ausência de leis específicas no Brasil.
Imagem: Envato Elements
De contas de e-mail e perfis em redes sociais a criptomoedas e bibliotecas virtuais, a herança digital é um novo campo de debate jurídico e familiar. Afinal, na era em que quase tudo é armazenado online, o que acontece com o patrimônio digital após a morte?
Em um julgamento pioneiro, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), tendo como relatora a ministra Nancy Andrighi, traçou um importante precedente ao debater a inclusão de ativos digitais nos processos de inventário. Entenda melhor o tema ainda pouco explorado pelo público.
O que é herança digital?
Ainda não existe uma definição exata para o termo. De todo modo, pode-se dizer que “herança digital” se refere ao conjunto de bens e direitos que uma pessoa acumulou no ambiente digital ao longo da vida, e que precisam de alguma destinação após o seu falecimento.
Conforme explica o advogado Matheus Lobo Marinho Noleto ao analisar a questão para a Defensoria Pública do Paraná, a herança digital é caracterizada por sua composição de ativos intangíveis, como arquivos de texto, áudio, imagens, vídeos, contas online e dados pessoais.
O ponto que torna essa herança única é que esses bens não possuem uma contraparte ou existência no mundo físico (como acontece com imóveis ou valores depositados em bancos).
Por serem unicamente dados digitais, que podem ter tanto valor econômico quanto valor afetivo para os sucessores, sua transferência post-mortem requer um mecanismo legal específico, algo que a legislação atual, contudo, ainda não oferece respaldo.
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Quais são os bens digitais?
De acordo com o escritório Tonani Advogados, a distinção entre os bens digitais é feita com base na sua finalidade. Os especialistas classificam os bens da seguinte forma:
Bens Digitais Patrimoniais: correspondem a bens com uma vocação essencialmente econômica. Tratam-se de ativos virtuais capazes de gerar valor financeiro, o que os torna parte integrante do patrimônio a ser inventariado (o espólio). Exemplos incluem:
- Criptoativos (criptomoedas, NFTs, etc.);
- Contas online monetizadas (Instagram, Youtube, etc.);
- Pontos em cartões de crédito;
- Milhas aéreas;
- Direitos autorais de músicas ou outros tipos de obra.
Bens Digitais Existenciais (ou Afetivos): incluem todo o acervo virtual cujo valor reside na esfera sentimental e de memória, e não no aspecto financeiro. Exemplos incluem:
- Contas online não monetizadas;
- E-mail pessoal;
- Histórico de mensagens em apps;
- Fotos e vídeos armazenados em ambiente digital.
Como funciona a herança digital no Brasil?
Apesar da crescente relevância do tema, a herança digital ainda carece de uma legislação específica no Brasil. Conforme destaca Renata Mangueira de Souza, especialista em direito da família e sucessões, o Código Civil atual não possui previsões que contemplem diretamente a sucessão de bens digitais.
A necessidade de regulamentação, no entanto, é cada vez mais urgente, visto que a sociedade tem migrado a maior parte de sua vida e patrimônio para o ambiente virtual, armazenando informações e ativos na nuvem e em dispositivos eletrônicos.
Diante dessa lacuna legal, a jurisprudência tem dado os primeiros passos. Um marco recente veio do STJ, que, em um julgamento inédito da 3ª Turma — relatado pela ministra Nancy Andrighi —, discutiu a inclusão desses bens em processos de inventário.
A decisão do STJ prevê a possibilidade de nomeação de um “inventariante digital”. Este profissional seria responsável por acessar o conteúdo digital do falecido, identificando e listando tanto os bens com valor econômico quanto os de cunho afetivo, para que sejam devidamente integrados ao inventário.
Enquanto projetos de lei aguardam tramitação para regulamentar a herança digital de forma clara, os processos de sucessão desses ativos seguem amparados pela jurisprudência, tendo esse recente entendimento do STJ como uma referência importante.
Principais desafios da herança digital
A crescente importância dos bens virtuais – que abrangem desde arquivos pessoais até ativos financeiros de alto valor – está acompanhada por uma série de desafios jurídicos e práticos. A inexistência de uma legislação clara e a rigidez de um Código Civil concebido para um mundo analógico criam obstáculos significativos para os herdeiros.
Entre os principais pontos de atrito que definem a complexidade do tema estão questões ligadas à própria lacuna legal, particularidades na sucessão de criptoativos e o conflito entre a vontade do usuário e a autonomia das grandes plataformas digitais.
Falta de legislação específica sobre herança digital
Um dos pontos centrais nas discussões sobre o tema é a ausência de uma legislação específica que regulamente a herança digital. O Código Civil atual não contempla, de forma adequada, as transformações tecnológicas e sociais que ocorreram nas últimas décadas, deixando lacunas importantes diante da nova realidade digital em escala global.
É esse descompasso, entre outros pontos, que Henrique Lana e Cinthia Fernandes Ferreira abordam no artigo “A herança digital e o direito sucessório: nuances da destinação patrimonial digital”, publicado no IBDFAM.
Os autores ressaltam que as regras atuais ainda estão alicerçadas em normas antigas, uma época em que as questões digitais eram incipientes e completamente distantes da atual realidade.
“Pode-se dizer que as normas sucessórias atualmente em vigor se baseiam, quase inteiramente, naquelas mesmas regras do século passado, sendo que, naquela época, questões digitais eram pouquissimamente discutidas e muito distantes da realidade brasileira”, observam.
Sucessão de criptomoedas e ativos digitais
Outro ponto que merece atenção diz respeito aos desafios relacionados à sucessão de criptomoedas. Em alguns casos, existe o risco de perda definitiva dos ativos, especialmente quando o acesso se desdobra por meio de uma chave.
Quando as criptomoedas são adquiridas por meio de exchanges, o processo tende a ser mais simples — sobretudo se houver a possibilidade de nomear um herdeiro. No entanto, quando a compra é feita por meio de wallets (carteiras digitais), a situação se torna mais complexa, já que o acesso é único e intransferível.
Por isso, é fundamental que o investidor estabeleça um planejamento sucessório prévio, a fim de evitar a perda dos valores em caso de imprevistos.
Herança e a autonomia das plataformas
No âmbito das redes sociais, o debate sobre a herança esbarra diretamente na autonomia das plataformas, já que cada uma adota uma política específica para gerir o legado digital de seus usuários após o falecimento.
O grande ponto de atrito é que, ao se cadastrarem, os usuários frequentemente aceitam termos de serviço que definem o destino de sua herança digital, muitas vezes sem a devida consciência das implicações.
Como se preparar para a sucessão digital
Em meio às análises e opiniões de especialistas, a importância de um planejamento sucessório digital é unanimidade. Dada a inexistência de uma regulação específica e os diferentes desafios práticos, formalizar um testamento digital é essencial para qualquer indivíduo, visto que a maioria das pessoas possui, hoje, algum tipo de valor digital a ser deixado — seja ele afetivo ou financeiro.
Quando se trata dos bens digitais patrimoniais (aqueles que geram consequências financeiras), eles naturalmente integram o espólio e podem ser partilhados. Embora o testamento seja sempre um instrumento crucial para guiar as vontades do falecido, não costuma haver grandes impedimentos para a repartição desses ativos, desde que sejam respeitados os direitos dos herdeiros necessários à legítima (a metade obrigatória da herança).
Entretanto, no que diz respeito aos bens existenciais ou afetivos, a questão se torna mais delicada. Essa esfera abrange conteúdos estritamente ligados à intimidade e à vida pessoal do falecido, como e-mails e arquivos de redes sociais. Nesses casos, o acesso pode gerar conflito com o direito à personalidade e à privacidade.
Em suma, é possível que predomine o entendimento de que essa herança de valor sentimental só deve ser compartilhada se houver uma expressa manifestação de vontade deixada em vida pelo titular, idealmente por meio de um testamento.
Testamento digital: como formalizar?
Mais do que uma questão jurídica, o testamento trata de garantir que o patrimônio digital — financeiro, intelectual ou afetivo — tenha um destino adequado e seguro.
Talvez o primeiro passo seja fazer um inventário dos ativos digitais, listando contas, acessos, senhas e informações relevantes sobre plataformas, arquivos em nuvem, criptomoedas e perfis em redes sociais. No caso de criptoativos, é fundamental garantir que as chaves privadas ou informações de acesso estejam protegidas, mas também acessíveis mediante a comprovação de falecimento.
O testamento público constitui um ato formal e personalíssimo — ou seja, deve ser realizado de forma presencial pelo próprio interessado — perante um Tabelião de Notas.
Para elaborá-lo, qualquer indivíduo com idade igual ou superior a 16 anos e que esteja em plena capacidade de manifestar sua vontade pode fazê-lo. É obrigatória a presença de duas testemunhas idôneas durante o processo, as quais não podem ter qualquer grau de parentesco com o beneficiário da herança.
Por fim, é recomendável buscar orientação jurídica especializada, de modo que o planejamento seja compatível com as normas vigentes e com as particularidades de cada ativo digital.
- Leia também: ITCMD: como funciona o imposto sobre heranças
Tendência de regulamentação da herança digital
Em um movimento para modernizar o Código Civil brasileiro, o Projeto de Lei 4/2025, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG), propõe a inclusão do direito civil digital. Entre seus objetivos primários está a regulamentação clara de como ativos e bens em formato digital poderão ser transferidos em casos de falecimento.
A proposta legislativa visa estabelecer um critério de valor econômico apreciável para a sucessão. Assim, senhas, perfis e ativos digitais só seriam transmitidos aos herdeiros se tivessem comprovado valor financeiro. Em contrapartida, o projeto veda o acesso a mensagens privadas do falecido, garantindo a preservação de sua privacidade mesmo após o óbito.
Contudo, essa delimitação gera um dilema prático. Informações cruciais para a gestão de bens e finanças — além de registros de valor afetivo — frequentemente estão contidas justamente em e-mails, aplicativos de mensagens e outras contas digitais privadas.
Embora o projeto já tenha sido apresentado, ele ainda não entrou em tramitação. Diante dessa indefinição legal, a responsabilidade recai sobre o próprio investidor, que deve tomar medidas proativas de planejamento para assegurar a sucessão de seu patrimônio digital.
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