A disputa entre grandes empresas de tecnologia e companhias de telecomunicações sobre o “fair share” (parcela justa) intensifica-se no Brasil, enquanto a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) avalia o cenário. A controvérsia envolve o papel das big techs no financiamento da infraestrutura de rede, tema que vem gerando discussões calorosas entre os setores. O debate, que ganhou destaque no evento Futurecom, em São Paulo, reúne pesos-pesados dos dois lados e traz à tona questionamentos sobre a divisão de responsabilidades no tráfego de dados na internet.

Disputa sobre o fair share: o que está em jogo?

O conceito de “fair share” defende que as grandes provedoras de conteúdo — as chamadas big techs, como Meta, Google, Netflix e Amazon — devem contribuir financeiramente para o desenvolvimento da infraestrutura de rede no Brasil. A tese é fortemente apoiada pelas operadoras de telecomunicações, como Vivo, TIM e Claro, que argumentam que essas empresas de tecnologia são responsáveis por grande parte do tráfego na rede e, portanto, deveriam ajudar na sua manutenção e expansão.

As empresas de telecomunicações enfrentam o desafio de realizar altos investimentos em infraestrutura, ao mesmo tempo que observam um retorno sobre o investimento (ROI) cada vez menor. Segundo elas, o modelo atual, em que a responsabilidade pelos custos de manutenção recai quase exclusivamente sobre as teles, não é sustentável no longo prazo, especialmente com o aumento exponencial do tráfego de dados causado pelo consumo de conteúdo digital.

As Big Techs também contribuem para a infraestrutura?

As big techs, por sua vez, contestam essa visão. Elas alegam que seu papel no aumento do tráfego de dados é positivo para as próprias operadoras, já que são responsáveis por atrair a maior parte dos usuários que consomem seus serviços através das redes de telecomunicações. Além disso, essas gigantes da tecnologia destacam que já investem de maneira significativa em infraestrutura de internet, por meio de data centers, cabos submarinos e CDNs (Content Delivery Networks, ou redes de entrega de conteúdo), que contribuem para a eficiência e robustez da conectividade global.

Durante o evento Futurecom 2024, Alessandro Molon, diretor-executivo da Aliança pela Internet Aberta (AIA), que representa empresas como Meta, Netflix e Mercado Livre, classificou o projeto de “fair share” como uma “ideia ruim”. Segundo Molon, o modelo beneficiaria apenas as grandes operadoras de telecomunicações, que estariam buscando compensar suas perdas de receita, resultantes de maior competição no mercado e de mudanças regulatórias promovidas pela Anatel para estimular a entrada de pequenos provedores de internet.

O papel da Anatel na disputa entre Big Techs e Telecom

A Anatel tem um papel crucial nessa disputa, uma vez que sua avaliação sobre a existência de uma “falha de mercado” entre as operadoras de telecomunicações e as big techs pode determinar o rumo dessa questão. O conselheiro da agência, Artur Coimbra, explicou que a análise deve focar no poder de barganha das big techs dentro dessa relação. A agência busca entender se essa situação reflete uma prática comum de mercado, em que cada parte negocia suas responsabilidades, ou se as grandes empresas de tecnologia exercem um poder desproporcional, o que exigiria uma intervenção regulatória.

Coimbra destacou ainda que, nos últimos 20 anos, o custo de armazenamento de dados despencou em torno de 98%. Isso significa que, se antes R$ 100 eram gastos em armazenamento de dados, hoje, o custo é de apenas R$ 1. Esse cenário possibilitou a criação de novas formas de estrutura de rede, como a proliferação de data centers em cidades menores, que reduzem a necessidade de uso intenso da rede e melhoram a eficiência.

Um consenso é possível?

Apesar da tensão entre os dois setores, representantes de ambos os lados reconheceram a importância de se buscar soluções colaborativas. O presidente-executivo da Conexis Brasil, Marcos Ferrari, que representa grandes operadoras de telecomunicações, argumentou que existe uma “relação simbiótica” entre as empresas de tecnologia e as de telecom. “As plataformas dependem das operadoras, assim como as operadoras dependem do consumo gerado pelas plataformas”, afirmou Ferrari.

A grande questão agora é definir de que maneira essa colaboração pode ocorrer de forma justa para ambos os lados. Até o momento, as operadoras de telecomunicações não apresentaram uma proposta definitiva de como o modelo de fair share funcionaria na prática. Possíveis alternativas incluem parcerias diretas, novos modelos de negócios ou mesmo o estabelecimento de regras de investimento conjunto em infraestrutura.

O Futuro da Infraestrutura de Internet no Brasil

A Anatel ainda não emitiu uma decisão final sobre o caso, mas já realizou duas consultas públicas ao longo do último ano para obter informações e opiniões das partes interessadas. A decisão da agência será crucial para determinar se o Brasil seguirá o caminho de implementar o fair share ou se outras soluções para o financiamento da infraestrutura de conectividade serão adotadas.

Independentemente do resultado, o debate sobre a divisão de responsabilidades entre big techs e telecomunicações deverá continuar moldando o futuro da infraestrutura de internet no país, especialmente à medida que a demanda por serviços digitais continua a crescer. A próxima fase desse embate será decisiva para o equilíbrio entre os interesses dos grandes players de tecnologia e as necessidades de investimento das empresas de telecomunicações brasileiras.