Vício em apostas: casos reais
Você sabia que vício em apostas é patológico? Vender o carro para pagar dívidas. Desfazer-se de imóvel para quitar empréstimo. Ceder terreno para cobrir garantia de crédito bancário. Todos esses eventos foram relatados por pessoas viciadas em apostas e reconhecem por si próprias que possuem uma doença, a ludopatia. Doença da sociedade moderna Em 1980, […]
Você sabia que vício em apostas é patológico? Vender o carro para pagar dívidas. Desfazer-se de imóvel para quitar empréstimo. Ceder terreno para cobrir garantia de crédito bancário. Todos esses eventos foram relatados por pessoas viciadas em apostas e reconhecem por si próprias que possuem uma doença, a ludopatia.
Doença da sociedade moderna
Em 1980, a OMS (Organização Mundial da Saúde), classificou o vício em jogos de azar como ludopatia, sendo classificada no Brasil com CID: 10-Z72.6 (mania de jogo e apostas) e 10-F63.0 (jogo patológico). É uma patologia que existe há muitas décadas, porém ganhou maior visibilidade principalmente no período pós-pandemia, onde devido ao isolamento social, as pessoas buscaram distrações e entretenimento na internet.
Com a popularização das apostas online, uma epidemia de sites de apostas e jogos de azar tomou conta da sociedade moderna, inseridos em transmissões de eventos esportivos, mídias sociais de influenciadores e diversos aplicativos de smartphones, com promessas de ganhos exponenciais e com apelo de enriquecimento fácil.
Em uma pesquisa realizada pela BBC, no Reino Unido e publicado na revista “The Lancet Psychiatry”, a partir de estudos de neuroimagem, fica claro que existem várias regiões do cérebro associadas ao jogo de azar. Regiões importantes associadas à tomada de decisão arriscada incluem o córtex pré-frontal ventromedial (responsável pela tomada de decisão, memória e regulação das emoções); o córtex frontal orbital (que auxilia o organismo a responder às emoções); e a ínsula (que regula o sistema nervoso autônomo).
Os jogadores compulsivos podem, portanto, apresentar uma maior atividade nestas áreas. Estudos demonstraram ainda que a dopamina, neurotransmissor que auxilia as células a se comunicarem, foi liberada, causando maior excitação em pessoas durante partidas apostadas. Essa sensação pode ser comparada ao vício em substância entorpecentes e os usuários de drogas ilícitas.
Esse vício patológico enseja uma grande deterioração no poder financeiro das pessoas e consequentemente em conflitos com companheiros e familiares, já que os efeitos das perdas financeiras transbordam às pessoas próximas e conviventes.
Relatos de viciados em apostas
Segundo o relato de Patrícia (ao site G1), cozinheira de 43 anos do interior de São Paulo, entrou no mundo dos jogos online de forma despretensiosa, mas o vício acabou levando todas suas economias. Durante a pandemia, mais precisamente no final de 2020, recebeu uma propaganda sobre um aplicativo de apostas onde os usuários recebiam retornos altíssimos e então fez o cadastro, depositou R$ 5.000,00 e começou a jogar o jogo do “foguetinho”. As apostas tornaram-se vício e Patrícia começou a acordar de madrugada para apostar. Quando se deu conta, a cozinheira devia a um agiota e sua perda financeira foi de R$ 80.000,00 em dois meses.
Juliana, advogada no estado do Paraná, relata também ao G1 que conheceu o “Jogo do Tigrinho” navegando pela internet e apostou despretensiosamente R$ 30,00. Como perdeu na primeira tentativa, prosseguiu com as apostas tentando reaver os valores, e no ápice das perdas financeiras, após empréstimo bancário e outras dívidas, chegou ao somatório de R$ 100.000,00 de prejuízo.
O funcionário público Murilo Castro (pseudônimo de um apostador) relatou ao jornal Estadão, que está em tratamento psicológico e psiquiátrico há cinco meses, contra a ludopatia. Entre 2017 e 2022, perdeu dinheiro com plataformas de daytrade e em diversas bets esportivas ou na modalidade de “cassino on-line”. Hoje ele acumula uma dívida de R$ 200 mil, fruto dos vários empréstimos feitos para apostar ao longo desse tempo.
O primeiro contato de Murilo com as apostas foi no “jogo do bicho”, modalidade de apostas mais tradicional no Brasil. A partir daí, todo e qualquer evento de jogos de azar eram alvo para tentar ganhos exponenciais de dinheiro. O que houve, na verdade, foi a deterioração do seu patrimônio, que o fez perder tudo que havia conquistado em toda a vida de trabalho.
Há quem um dia foi diagnosticada com ludopatia e hoje auxilia pessoas a deixarem o vício. É o caso da vendedora Sheila Macedo, de 32 anos, em entrevista ao site Marie Clarie, do grupo Globo. Há 5 anos, era assistente administrativa e recebia R$ 800,00 de salário. Conheceu o jogo do “foguetinho” e a partir daí iniciou um caminho tortuoso pelo mundo das apostas.
Inicialmente a vendedora realizava apostas de R$ 50,00, aumentou para R$ 500,00 com intuito de recuperar os prejuízos passados, e em um efeito “bola de neve” se viu em uma situação em que devia dinheiro a 46 agiotas, totalizando R$ 400.000,00.
“Perdi a noção de tempo, não sabia quando era dia, quando era noite, só sabia jogar sem parar. Quando não jogava, pensava em me matar. Não entendia como tinha chegado àquele ponto. Olhava para a avenida cheia de carros e cogitava pular ou me encher de remédios. Sentia vergonha de mim e pavor de contar para minha família”, afirma Patrícia.
“Mas, com a ajuda dos familiares, do apoio psicológico e tratamento, hoje eu superei. Cada dia é uma vitória e quero ajudar cada vez mais pessoas a saírem desse mal.”
Dados de pesquisas
Grande parte da disseminação de jogos de azar, bets e outros tipos de apostas são decorrentes da facilidade de acesso à plataforma na internet, que são vastamente divulgadas por influenciadores com milhões de seguidores nas redes sociais.
Uma pesquisa Datafolha mostra que 17% dos beneficiários do Bolsa Família disseram ter apostado ou já terem feito apostas esportivas online, onde 30% relata gastar ou ter gasto mais de R$ 100 por mês.
Outra pesquisa, dessa vez da Associação Brasileira das Entidades de Mercado (Anbima) divulgou que em 2023, aproximadamente 22 milhões de brasileiros, o equivalente a 14% da população, participaram de apostas online, enquanto apenas 2% investiram na bolsa no mesmo período.
Jogos de azar são proibidos no Brasil pelo Decreto-lei 9.215 de 30/04/1946, porém existe um outro, o Decreto-lei 13.756/2018 que permite o funcionamento dos sites de apostas no país.
Quando tratamos de apostas esportivas, os dados são mais alarmantes, devido ao fato de o Brasil figurar em 1° lugar de países que mais acessam sites de apostas esportivas, muito à frente dos demais.
Colocação | País | Acessos (em bilhões) |
1º | Brasil | 3,19 |
2º | Reino Unido | 1,61 |
3º | Nigéria | 1,29 |
4º | Turquia | 0,95 |
5º | Estados Unidos | 0,78 |
6º | Índia | 0,48 |
7º | África do Sul | 0,45 |
8º | Ucrânia | 0,39 |
9º | Peru | 0,39 |
10º | Austrália | 0,31 |
Estudo da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC) mostra os seguintes dados:
- 23% dos apostadores deixaram de comprar roupas para apostar;
- 9% pararam de fazer compras no mercado para apostar;
- 11% não gastaram com saúde e medicamentos para apostar;
- 64% dos apostadores utilizam a renda principal para apostar;
- estes, 49% usam também a renda extra.
Esses dados vão de encontro com outra pesquisa, a “Pulso 2023” da IPSOS, onde revelou que 61% dos brasileiros relatam não conseguir guardar dinheiro para investir e 34% conseguem poupar.
Falta de educação financeira
Em um país onde a educação financeira é tratada como tema irrelevante por parte do poder público e os divulgadores de golpes são idolatrados por parte da população que consome esse tipo de jogos de azar e similares, os dados são fidedignos e espelham exatamente a carência de capacidade entre o que é certo e errado.
Pessoas são levadas ao “abate” por influenciadores que recebem sabemos lá qual tipo de remuneração, se é contrato fixo, salário mensal, ou até mesmo comissões decorrentes das perdas dos usuários.
Os sites de apostas esportivas, por exemplo, figuram como patrocinador master de grande parte dos clubes de futebol da Série A, a elite milionária do esporte brasileiro. O acesso às casas de apostas é irrestrito e simples, com apelativas promessas de ganhos financeiros e promessas de mudança de vida.
Essa epidemia de viciados em apostas e jogos de azar é um problema milenar, pois há relatos em diversas sociedades passadas como no Egito Antigo (3.000 a.c.), na qual criação do dado e dos jogos de tabuleiro não apenas acrescentou novas dimensões ao entretenimento, mas também modelou tradições que resistem ao teste do tempo. Esses jogos se tornaram uma parte integrante da nossa cultura, solidificando a relação intrínseca entre apostas e sociedade.
Com a globalização e facilidade de conexão com a internet, os riscos associados às apostas foram potencializados. Famílias vêm deteriorando-se, casamentos sendo dissolvidos e patrimônios adquiridos durante toda a vida são perdidos em um curto intervalo de tempo.
Escancarando todas essas consequências da ludopatia, parece cada vez mais claro que a única saída para a libertação de golpes financeiros, promessas de ganhos fáceis é a educação financeira aplicada desde as séries fundamentais da grade curricular. Nossos governantes, nos últimos 135 anos desde a Proclamação da República em 1889, não tiveram a preocupação de educar financeiramente a população, e agora sofremos todos juntos as consequências.
Conclusão
Somos uma população pobre, sem educação financeira, campeã em número de acessos a sites de apostas esportivas, quase dois terços da população beneficiária do Bolsa Família realizam apostas online, os influenciadores divulgam golpes diariamente sem nenhuma (ou quase) fiscalização. O Governo Federal investe cerca de 5% do PIB em educação, e pelo menos o triplo com previdência social. A conta não fecha, o resultado é previsível.
Em resumo, temos todos os requisitos para adentrarmos com maior intensidade em um “buraco negro financeiro”, em especial a camada mais vulnerável da população. Não é pessimismo, é apenas realidade. Nossa função seguirá sendo disseminar a educação financeira, sempre.
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