Nesta segunda (24), data que marca os 49 anos do golpe de Estado que instaurou a ditadura militar na Argentina, o presidente Javier Milei anunciou a retirada do sigilo dos documentos de inteligência referentes àquele período, atendendo a um decreto de 2010 emitido durante o governo de Cristina Kirchner, mas que nunca foi completamente implementado. A medida, que visa promover uma “memória completa” sobre os eventos da ditadura, tem gerado controvérsias entre defensores dos direitos humanos e o governo argentino, que também introduziu novas propostas legislativas.

Suspensão do sigilo

A decisão do presidente Milei de liberar os documentos secretos das Forças Armadas relativos ao período de 1976 a 1983, que ficou marcado como o período da ditadura argentina, é uma continuidade de um decreto presidencial de 2010, que estabeleceu a desclassificação desses arquivos. No entanto, o decreto de Cristina Kirchner nunca foi totalmente implementado, o que significa que muitos documentos ainda permaneciam sob sigilo até a recente decisão de Milei.

Esses documentos incluem informações dos serviços de inteligência e outras evidências que podem ajudar a esclarecer os acontecimentos daquele período conturbado da história argentina. Segundo o porta-voz do presidente, Manuel Adorni, a medida visa garantir a transparência e contribuir para o direito à memória e à verdade, pontos fundamentais para a preservação dos direitos humanos no país. A liberação dos documentos se torna ainda mais simbólica, já que o anúncio coincide com o 49º aniversário do golpe de 1976.

O contexto político

O governo de Milei tem defendido uma visão de “memória completa” sobre os eventos da ditadura argentina, na qual os crimes cometidos pelas Forças Armadas são colocados ao lado dos atos das guerrilhas que combateram o regime. Isso inclui, por exemplo, a proposta de reconhecimento de alguns ataques guerrilheiros como crimes contra a humanidade. Essa visão gerou uma forte reação de organizações de direitos humanos, que argumentam que ela serve para relativizar os crimes cometidos pelo regime militar e enfraquecer o foco na responsabilidade do Estado.

O governo de Milei, ao adotar essa posição, afirma que sua política busca dar uma visão mais ampla e equilibrada sobre os eventos daquele período, porém, a tentativa de equiparar os crimes das Forças Armadas aos dos grupos guerrilheiros tem gerado divisões no debate público. Para o governo, a liberdade de informação e o reconhecimento dos crimes de todas as partes envolvidas são necessários para a construção de uma memória nacional mais precisa.

Reconhecimento do Caso Humberto Viola

Dentro da mesma linha, o governo argentino anunciou que passará a considerar o ataque do Exército Revolucionário Popular (ERP), uma guerrilha que agiu contra a ditadura, como um “crime contra a humanidade”. Este ataque, ocorrido em 1º de dezembro de 1974, resultou na morte do capitão Humberto Viola e de sua filha pequena, em um episódio marcado pela violência e pela troca de tiros em Tucumán. A viúva do capitão havia recorrido à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 2016, pedindo que o caso fosse classificado como crime contra a humanidade, o que foi inicialmente rejeitado pelo governo de Alberto Fernández, mas agora será revisto por decisão de Milei.

Ao reconhecer o assassinato do capitão e de sua filha como um crime contra a humanidade, Milei reforça sua posição de que todas as violências daquele período devem ser tratadas com a mesma seriedade, não importando se cometidas por militares ou guerrilheiros. Essa decisão é um reflexo de sua proposta de justiça e memória, mas também tem gerado críticas por parte de muitas organizações de direitos humanos, que alegam que a medida pode enfraquecer o foco nas vítimas da ditadura.

Proposta de lei

Outra medida importante anunciada por Milei é a proposta de enviar ao Congresso um projeto de lei que tornaria inafiançáveis os crimes cometidos pelas guerrilhas durante o período da ditadura. Esta proposta também é vista por muitos como uma tentativa de tratar de maneira similar os atos das guerrilhas e os crimes do regime militar, o que tem gerado uma polarização no debate sobre a memória histórica.

Reações das organizações de direitos humanos

As ações do governo Milei foram amplamente criticadas por diversas organizações de direitos humanos, que argumentam que o principal foco da política deveria ser a quebra dos pactos de silêncio dos responsáveis pelos crimes da ditadura e o esclarecimento dos desaparecimentos forçados. Carlos Pisoni, um ativista argentino, afirmou que a principal tarefa do governo deveria ser investigar e punir os genocidas, que foram responsáveis por torturar, assassinar e desaparecer com cerca de 30 mil argentinos durante o período da ditadura.

O Espaço Memória e Direitos Humanos da Escola de Mecânica Naval (ESMA), que foi um dos principais centros de repressão da ditadura, também se posicionou contra a equiparação dos crimes, enfatizando que as vítimas da ditadura foram, em sua maioria, desaparecidas e torturadas de maneira sistemática, e que a visão do governo de Milei pode enfraquecer a luta por justiça.