Tremembé: por que séries de criminosos rendem tanto no Brasil?
Produções de true crime ganham cada vez mais espaço nas plataformas e mostram que o interesse nacional por casos reais vai além da curiosidade.
Imagem: Amazon Prime/Reprodução
Na última sexta-feira (31), estreou Tremembé no Prime Video, mais uma daquelas séries baseadas em crimes reais, com roteiro dramatizado. Assim como outras do gênero, a obra apareceu no topo dos rankings de mais assistidas no streaming.
Já faz tempo que tamanho fascínio dos fãs brasileiros por histórias do tipo é evidente. O sucesso de podcasts, livros e séries que tratam do dito “true crime” comprova como o interesse do público por narrativas baseadas em crimes reais só cresce. Embora o gênero não seja exatamente uma novidade, é inegável que, nos últimos anos, as coisas ganharam outra proporção.
Somente entre janeiro de 2018 e março de 2021, as séries documentais registraram um aumento de 63%, com o true crime despontando como o maior subgênero da categoria — e o que mais cresce entre todos os demais, inclusive os esportivos. Os dados são da empresa global de rastreamento de mídia Parrot Analytics.
Tremembé: quando o crime vira entretenimento
A série Tremembé retrata o dia a dia do presídio homônimo, conhecido por abrigar presos que ganharam notoriedade nacional, como Suzane von Richthofen, Elize Matsunaga, os irmãos Cravinhos etc.
O apelo principal está no fato de combinar fatos reais com um formato de entretenimento — dramatização, elenco conhecido, ambiente fechado (o presídio) — o que cria uma narrativa relativamente fácil de consumir, mas carregada de apelo emocional, tensão e curiosidade.
O formato já é bem explorado, tanto no cenário internacional quanto no mercado brasileiro. Por aqui, produções como Dom, Elize Matsunaga: Era Uma Vez um Crime e DNA do Crime comprovam o sucesso do gênero entre o público.
Dentro desse universo, também há espaço para séries de tom mais documental e não roteirizado (unscripted), que priorizam a investigação e o relato dos fatos em vez da dramatização. Entre os títulos nacionais que seguem essa linha estão O Caso Evandro, Pacto Brutal e Doutor Castor, todos exemplos de como o true crime encontrou terreno fértil — e audiência cativa — no streaming brasileiro.
Scripted e unscripted
O gênero true crime se divide essencialmente em duas vertentes: scripted e unscripted. A diferença está na forma como as histórias reais são contadas — e na relação do público com a narrativa. As produções unscripted seguem o formato documental, priorizando a fidelidade aos fatos. Já o scripted true crime dramatiza casos verídicos com atores, roteiros e recursos de ficção.
Embora representem apenas 19% da oferta, as séries roteirizadas registram de três a cinco vezes mais demanda média por título. Já as produções documentais dominam em volume, respondendo por mais de 80% das obras disponíveis, segundo Ivan Vitório, gerente sênior de insights da Parrot Analytics.
Repercussões e controvérsias
A conexão entre o lado mais sombrio da natureza humana e o entretenimento tem se revelado uma aposta certeira das plataformas de streaming. No entanto, esse sucesso vem acompanhado de um terreno delicado, repleto de repercussões e controvérsias — e não são poucos os casos.
Um exemplo recente é o documentário O Que Jennifer Fez?, da Netflix, que retrata a história de Jennifer Pan, canadense que arquitetou o assassinato dos próprios pais em 2010. No último ano, a produção foi alvo de críticas após acusações de uso de imagens geradas por inteligência artificial (IA) para fins de dramatização.
Situação semelhante ocorreu com a minissérie A História Distorcida de Amanda Knox, que reacendeu o debate sobre os limites éticos de reviver tragédias reais. Logo no início das filmagens, Stephanie, irmã da vítima, declarou ao jornal britânico The Guardian: “Nossa família já passou por muita coisa, e é difícil entender qual é o propósito disso.”
O caso dos “narcobabies” e a “romantização da criminalidade”
O crescimento das produções que abordam crimes reais também esbarra em debates que tocam o imaginário coletivo e a própria cultura brasileira. Um deles diz respeito aos chamados “narcobabies”, termo usado para se referir aos filhos de líderes de organizações criminosas que herdam não apenas a influência, mas também a notoriedade dos pais.
O Brasil tem um histórico de como o crime é representado ou percebido na mídia com contornos de glamour ou fascínio. Nesse contexto, o termo “bandidolatria” também vem sendo usado para descrever situações em que criminosos — especialmente os de maior visibilidade — passam a ocupar um lugar de status simbólico ou até de valorização social, como analisa a repórter investigativa da Revista Oeste, Rachel Diaz.
Assim, o fenômeno alimenta o apelo dessas séries: quando o “vilão” já se tornou quase personagem cultural, o público se interessa tanto pela história real quanto pela forma dramatizada dela.
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Por que essa temática rende tanto no Brasil?
O fascínio pelo true crime não é acidental, nem passageiro. É um fenômeno cultural oriundo de diversos fatores. Ou seja, para começar a entender como a curiosidade se transforma em audiência recorde, é preciso ter em mente que a explicação é multifacetada.
Dada a complexidade do tema, é sempre válido ouvir a perspectiva de profissionais estudiosos do tema, e pessoas que possuem intimidade com o assunto e experiência direta em produções desse segmento.
- Há um interesse pela “parte sombria” da sociedade, e os motivos por trás dos atos violência ; é o que diz a psicóloga clínica Gabriella Pessoa. “Também entramos em contato com o lado obscuro da personalidade e sentimentos primitivos– o bem e mal que está entrelaçado– também fazem parte de todos nós.”, complementou, em fala à revista Marie Claire.
- Também questionada pela revista, a criminalista Ilana Casoy argumenta que o consumo vai além da curiosidade. “É uma forma de entender como, por que e quando acontece, e o que podemos fazer se a violência, um dia, for contra nós.” Ela destaca que a maior parte do público consumidor é composta por mulheres. Conforme dados da Parrot Analytics, 54% da audiência global do gênero é feminina.
- O Brasil possui casos de repercussão nacional, noticiados amplamente, que se tornam “material bruto” para narrativas dramáticas. “Não existe em nenhum outro país uma referência a um tipo de crime que paralisa uma cidade ou um pedaço dela”, comentou Heitor Dhalia, roteirista de DNA do Crime, ao ser questionado pelo Estadão sobre o sucesso da série.
- Para Tainá Muhringer Tokitaka, roteirista das séries A Mulher da Casa Abandonada e Caso Evandro, o interesse pelo true crime está diretamente ligado ao contexto social do país. “O Brasil é um país muito violento e acredito que, enquanto isso seguir ocorrendo, continuaremos nos interessando pelo true crime. Além disso, a gente adora um melodrama, né? Nossa cobertura jornalística vai muito por essa linha. Crime e entretenimento estão estruturalmente fundidos na cobertura brasileira.”, disse à Coluna de Ricky Hiraoka do UOL.
O algoritmo da curiosidade: por que o true crime é um bom investimento?

Segundo a PwC Brasil, o setor de entretenimento & mídia (E&M) no Brasil teve crescimento de 7% em 2022, e está projetado para atingir cerca de US$ 41,3 bilhões no Brasil em 2027. Na esteira desse crescimento, o true crime se firmou como uma das verticais mais sólidas e indispensáveis no panorama atual do streaming.
Para os executivos da indústria, esse cenário aponta uma oportunidade clara e localizada. Em 2023, o Brasil foi responsável por metade de toda a demanda por true crime na América Latina, segundo análise da Parrot Analytics.
O domínio é evidenciado pelo fato de que as produções brasileiras do gênero conseguiram superar, no mercado doméstico, até mesmo os grandes sucessos internacionais do segmento.
Do ponto de vista das plataformas e produtores, entre os atrativos do gênero estão fatores como:
- O público tende a assistir vários episódios consecutivos, compartilhando teorias, comentando, até entrando em redes sociais — o que alimenta o “buzz”.
- Produção relativamente menor em comparação a grandes séries de ficção com muitos efeitos ou locações internacionais, já que o foco é em narrativa, personagens e fatos reais ou inspirados em fatos.
- Conteúdo “trusted” ou “já reconhecido”. Quando o crime já é conhecido do público, há uma redução na “desconfiança” ou barreira de entrada; as pessoas sabem do que se trata.
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Alta demanda e pouca oferta
Com a larga presença de produções sobre crimes reais, no streaming sugere fartura, mas a realidade dos dados da Parrot Analytics revela um desequilíbrio surpreendente: a oferta é escassa diante da voracidade do público.
Juntas, Netflix e Max detêm uma fatia dominante, com 60% do catálogo do gênero. No entanto, essa concentração está longe de satisfazer a demanda crescente, que se mantém persistentemente acima do que as duas gigantes conseguem suprir.
Oportunidades além da fronteira americana
Embora as narrativas norte-americanas capturem a maior parte da atenção global, a análise da Parrot Analytics aponta um terreno fértil para novos competidores ou para plataformas existentes que queiram diversificar. O nicho de ouro seriam produções de true crime localmente relevantes, não apresentadas em inglês.
O especialista Ivan Vitório enfatiza a força do regional, citando exemplos que provam que a conexão doméstica pode superar a internacional:
“Casos como ´42 Dias de Escuridão` (Netflix Chile) e “Pacto Brutal (HBO Max Brasil) mostram que títulos latino-americanos podem, inclusive, superar conteúdos norte-americanos em engajamento doméstico.”, exemplifica em publicação no portal Tela Viva.
O segredo está no formato, não no volume
O cerne da questão, segundo Vitório, não reside na quantidade total de conteúdo, mas sim na tipologia de oferta.
- Não Roteirizados: dominam o volume, compondo mais de 80% do catálogo. Embora preencham a grade em escala, geram uma demanda média por título menor.
- Dramatizados: Representam menos de 20% da oferta. Contudo, são verdadeiras máquinas de demanda, gerando em média bem mais demanda por título.
| Categoria | Scripted (Roteirizado) | Unscripted (Não Roteirizado) |
| Participação na Demanda | 44% | 56% |
| Participação na Oferta de Títulos | 19% | 81% |
Para a Parrot, o persistente descompasso entre a oferta limitada e a demanda robusta de true crime não é um problema, mas sim uma oportunidade estratégica. Isso pode se desenrolar por meio de aquisições inteligentes que ressoem no público local, ou na criação de conteúdos originais que explorem narrativas regionais.
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